A Arte está verificada


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“I don’t think you realize, I don’t think any of us realize, the force, the daimonic force that the great myths and legends have. From the profundity of the emotions and perceptions that begot them, and from the multiplication of them in many minds – and each mind, mark you, an engine of obscured but unmeasured energy. They are like an explosive: it may slowly yield a steady warmth to living minds, but if suddenly detonated, it might go off with a crash: yes: might produce a disturbance in the real primary world.’” – J. R. R. Tolkien, The Notion Club Papers

Neste tempo de Natal, celebramos o evento mais importante do cristianismo; a Encarnação do Verbo eterno de Deus que desce à nossa condição humana para nos redimir. Também foi no tempo de Natal que, em 3 de janeiro de 1892,  nasceu J.R.R. Tolkien, o famigerado autor de O Senhor dos Anéis e que dispensa apresentações.

Curiosamente, talvez, dado o tempo litúrgico de seu nascimento, providencialmente, J.R.R. Tolkien possuía uma visão peculiar da história Cristã, em que é unida narrativa literária fantástica, especificamente de mitos e contos de fadas, com narrativa Divina na História (a Encarnação do Verbo eterno de Deus). Nas próximas linhas, a partir de um ensaio de Tolkien, tentamos expor tal visão.

Teoria da Subcriação

O que são histórias de fadas? Qual a sua origem? Para que servem? Em seu ensaio On Fairy-Stories, Tolkien, a partir dessas questões, apresentou um excelente texto elucidativo sobre o processo de criação literária e mitopoese, criação de mitos. Tolkien, sendo católico, acreditava na existência de um Criador. Só existe um Criador capaz de criar. Nós, portanto, não temos poder de criação em si, mas, sendo criados à imagem e semelhança do Criador (Gn 1:26), temos a habilidade criativa inerente em nós:

“A Fantasia continua sendo um direito humano: fazemos em nossa medida e a nosso modo derivativo, porque somos feitos, e não apenas feitos, mas feitos à imagem e semelhança de um Criador.”

Comumente, ao adentrarmos em um mundo fantasioso, em um conto de fadas criado por um escritor que nos agrada, exercemos uma certa crença literária. Um estado mental em que somos imergidos na história que está sendo contada e, com um encanto permanente, acreditamos no que está sendo dito sem fazer distinção entre realidade e ficção. Esse estado mental tem sido chamado de Suspensão Voluntária da Incredulidade, termo criado por Samuel Taylor Coleridge. Tolkien, porém, pensa que a suspensão da incredulidade não é exatamente o que acontece quando o encantamento está operante. Pelo contrário, ela acontece justamente quando o encanto é rompido, quando a arte fracassa em cativar-nos. Saímos daquele Mundo Secundário, que outrora estávamos imergidos, e o olhamos de fora, a partir do Mundo Primário. Nesse caso, a incredulidade acontece e, por benevolência, por faz de conta, praticamos a suspensão voluntária da incredulidade para lá ficar. Ela não representa, portanto, o que genuinamente acontece na experiência de encantamento. Tolkien, então, para descrever o Mundo Secundário (ou imaginário), essencialmente diferente do Mundo Primário (realidade criada por Deus), que possui uma consistência interna de maneira que o encanto acontece e, dentro desse mundo, tudo que ele relata é “verdade”, utiliza o termo Subcriação. O subcriador de sucesso, portanto, é o verdadeiro artista de Faërie (Reino Encantado). É aquele criador de histórias que nos traz um Mundo Secundário com consistência interna, onde temos a experiência de encantamento e exercemos a crença literária. A nossa imaginação assume o controle e entramos no mundo criado, acreditando que, nele, lá tudo é “verdade”. Não é necessário uma ação de suspensão da descrença.

Esse encantamento produzido por um verdadeiro Conto de Fadas é o que Tolkien chama de Crença Secundária. Assim, um subcriador deve buscar essa Crença Secundária em suas subcriações. Para tanto, Tolkien pensa na subcriação como algo que “poderá de fato ajudar o desabrochamento e o múltiplo enriquecimento da Criação”. Isto é, o trabalho de subcriação é semelhante ao trabalho de um jardineiro que dá forma a uma planta selvagem em seu jardim. É um trabalho que respeita a essência (aquilo que faz uma coisa ser o que ela é) das coisas do Mundo Primário. Como ele escreve:

“A Fantasia é feita do Mundo Primário, mas um bom artífice ama seu material e tem um conhecimento e uma sensibilidade da argila, da pedra e da madeira que só a arte de fazer pode proporcionar. Ao forjar Gram o ferro frio foi revelado; ao fazer Pégaso os cavalos foram enobrecidos; nas Árvores do Sol e da Lua, raiz e tronco, flor e fruto manifestam-se em glória.”

Isto é, o subcriador enobrece a essência das coisas, como no exemplo do Pégaso. Aqui entra um ponto fundamental desta “filosofia da subcriação” de Tolkien. Aquele que pretende criar e usar a habilidade criativa pode fazer um eco (Bem) ou um escárnio (mal) da Verdade. A subcriação que ecoa a verdadeira criação de Deus é uma maneira do subcriador honrar a Deus.

Na própria obra literária de Tolkien, em sua subcriação, especialmente em O Silmarillion, podemos encontrar esta Teoria da Subcriação. Eru Illúvatar (Deus no universo Tolkieniano) criou, primeiramente, os Ainur para que eles pudessem continuar o trabalho criativo iniciado por Ele. Brevemente, Illúvatar fornece aos Ainur uma imagem de como viria a ser o mundo. Ele envia, então, os Ainur para o mundo como Valar para que eles começassem “sua enorme labuta em espaços imensos e inexplorados”. O papel dos Valar era trabalhar para que a visão que Illúvatar tinha vos dado acontecesse. Os Valar são, portanto, subcriadores.

Um exemplo de escárnio com a Verdade são os orcs — elfos, criaturas criadas por Illúvatar, remodeladas e corrompidas por Morgoth, o Ainur caído. Outro Valar, Aulë, criou os anões para honrar Eru Illúvatar, que aceitou e deu vida à subcriação de Aulë, sendo assim um exemplo de um eco da Verdade. Nem Morgoth e nem Aulë têm poder criativo, apenas subcriativo.

Conto Eucatastrófico

Qual é a finalidade de um conto de fadas? Na tentativa de responder essa pergunta, Tolkien argumenta que, sem dúvidas, especialmente nos condicionamentos que o mundo moderno nos impõe, o Escape é uma de suas principais funções. Uma fantasia fornece, de certa forma, um escapismo de uma realidade que nos sufoca. Em especial, o escape da Morte. Existem diversos exemplos desse escapismo nos contos de fadas. A imortalidade nos contos de Elfos, por exemplo. Esse escapismo, no entanto, está entrelaçado com a satisfação de um desejo humano, o da imortalidade. Assim, chegamos a outra função dos contos de fadas, o consolo. São desejos antigos do homem que, nessas histórias, encontram a satisfação imaginativa.

Porém, Tolkien argumenta, esse consolo dos contos de fadas possui um aspecto mais profundo. Um consolo que não se limita apenas à satisfação imaginativa de nossos desejos. O Consolo do Final Feliz é o que importa, diz Tolkien. Esse consolo dos contos de fadas, essa alegria da repentina mudança de eventos que pareciam catastróficos e que, no seu mundo interno, é um evento milagroso com o qual não se pode contar mais de uma vez, Tolkien chama de Eucatástrofe. Um conto eucatastrófico é a função mais elevada de um conto de fadas, diz ele. Assim como a função mais elevada de um Drama é a Tragédia.

Essa alegria eucatastrófica, vale ressaltar, não nega a existência do pesar, do fracasso, da discatástrofe – o contrário da eucatástrofe. Ela apenas nega o triunfo universal da derrota. Ela traz um respingo da Alegria, sugerindo que a resposta pode estar além da história contada. Quando a Alegria, nessa mudança de eventos, atinge o homem que a escuta, ela rompe o pesar, ela satisfaz o coração e, muitas vezes, faz os olhos lacrimejarem. Ela ultrapassa as muralhas da própria história e deixa um respingo do que há. Ela não é apenas um consolo para o pesar do mundo, ela é um vislumbre da realidade subjacente.

E, como no caso da subcriação, a alegria eucatastrófica pode ser encontrada na própria obra de Tolkien. Na Batalha dos Cinco Exércitos, em O Hobbit, a cadeia de eventos ocorrida indicava que a desolação e o triunfo do mal eram certos. É então que, de uma maneira providencial, como se o próprio Illúvatar estivesse agindo, que os eventos sofrem uma reviravolta. Bilbo exclama “As Águias! As Águias! As Águias estão chegando!” Eis aí, expresso na alegria momentânea do pequeno Hobbit, que em seguida desmaia por ocasião de uma pedra que bateu com toda a força no seu elmo, um evento eucatastrófico.

Outro evento eucatastrófico está, precisamente, na própria destruição do Um Anel em O Senhor dos Anéis. Frodo, prestes a destruir o Um Anel na Montanha da Perdição, sucumbe. Ele não resiste ao Um Anel. O exército de Aragorn, nas portas de Mordor, estava perdendo a batalha que eles, sabidamente, nunca poderiam ganhar. A única esperança era o pequeno Hobbit e a destruição do Um Anel. Sauron estava na iminência de triunfar. Tudo estava perdido. Então, mais uma vez providencialmente, uma mudança súbita de eventos ocorre. Gollum, que outrora fora poupado da morte pelo próprio Frodo, entra em cena e arranca o Um Anel do dedo de Frodo. Como um último suspiro, Frodo empurra Gollum e o Um Anel para as chamas da Montanha da Perdição. A alegria eucatastrófica faz-se presente.

O Mito Divino

Não é fato desconhecido que o cristianismo possui elementos míticos. Acadêmicos como Mircea Eliade, Joseph Campbell e René Girard, para citar apenas alguns, discursaram sobre isso. Tolkien, é claro, também sabia isso. A história cristã produz em nós os mesmos efeitos que os mitos e lendas produzem. O “mito” de Cristo, um Deus que, com Sua grandiosidade, faz-Se pequeno e desce à condição de Sua criação para nascer na pobreza de um estábulo e, através da Sua Paixão e Morte na Cruz, redimir a humanidade caída, faz-nos experienciar a Crença Secundária conforme descrita anteriormente. É uma história que satisfaz desejos primordiais do coração do homem e, por isso mesmo, traz consolação. Porém, existe um diferencial nessa história, nesse Evangelium. Nele, encontramos Criação e não subcriação. O cristianismo acontece na História. A crença secundária torna-se, para aquele que aceita esse Evangelium, crença primária. Ademais, possui eventos eucatastróficos. Na verdade, a sua própria história é um evento eucatastrófico na História. Como o próprio Tolkien explica:

“Os Evangelhos contêm um conto de fadas, ou uma história de tipo maior que engloba toda a essência dos contos de fadas. Contêm muitas maravilhas – peculiarmente artísticas, belas e emocionantes, “míticas” no seu significado perfeito e encerrado em si mesmo; e entre as maravilhas está a maior e mais completa eucatástrofe concebível. Mas essa história entrou para a História e o mundo primário; o desejo e a aspiração da subcriação foram elevados ao cumprimento da Criação. O Nascimento de Cristo é a eucatástrofe da história do Homem. A Ressurreição é a eucatástrofe da história da Encarnação. Essa história começa e termina em alegria. Tem preeminentemente a “consistência interna da realidade”. Nunca se contou uma história que os homens mais quisessem descobrir que é verdadeira, e não há nenhuma outra que tantos homens céticos tenham aceito como verdadeira por seus próprios méritos. Pois a Arte dela tem o tom supremamente convincente da Arte Primária, isto é, da Criação. Rejeitá-la leva à tristeza ou à ira.”

No Evangelium, Mundo Secundário e Mundo Primário se fundem. As lendas são consagradas. Mito e História se fundem. Criação genuína e pura. Os respingos de Alegria se confirmam nessa história suprema. O coração do homem encontra o consolo porque ele contém a satisfação dos desejos primordiais que falamos. Ele é a própria satisfação dos desejos. E não podia ser diferente, pois é Deus que Se faz carne para redimir a humanidade. A própria satisfação do coração do homem entra na História. Nós contamos nossas histórias com palavras, Ele conta a Sua história com a História e a Providência é o Seu enredo.

Nessa história, aquele vislumbre de uma realidade subjacente que os contos eucatastróficos nos trazem parece encontrar o seu auge. É como se ela fosse o ponto de convergência que “engloba toda a essência dos contos de fadas”. É para onde os contos de fadas que atingem a sua forma mais elevada apontam. É o conto eucatastrófico em primazia. É Deus nos dizendo: “Alegrai-vos, a arte está verificada”.

 

P.S.: Todas as citações deste artigo, com exceção da citação de abertura, foram extraídas da tradução de On Fairy-Stories encontrada em Árvore e Folha, publicado pela editora Martins Fontes.

 

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