Na segunda metade do século XIX, Georg Cantor publicou os seus trabalhos acerca da teoria dos números transfinitos. Hoje, Cantor é popularmente conhecido por ter demonstrado que existem infinitos maiores do que outros infinitos. Ou ainda, pela famosa Hipótese do Continnum, que afirma não existir nenhum conjunto cuja cardinalidade está estritamente entre a cardinalidade dos números naturais e a dos números reais — essa hipótese é indecidível em ZFC.
Até Cantor, com algumas ressalvas aqui e acolá, todo matemático — e filósofo — defendia a impossibilidade da existência de um infinito quantitativo em ato. Era possível apenas um infinito quantitativo em potência. Cantor, com a sua teoria, atualiza o infinito quantitativo e afirma: existe infinito quantitativo em ato; Aristóteles e os escolásticos estavam errados.
A nova teoria ganhou adeptos e críticos. Uma guerra nos fundamentos da matemática se iniciou. Dentre os adeptos, Bertrand Russell e David Hilbert se destacam. Hilbert, em um lamento de guerra, declarou que “ninguém nos expulsará do paraíso que Cantor criou para nós”. Entre os críticos, Leopold Kronecker e Henri Poincaré. Skolem disse que, numa conferência em 1908, Poincaré, em outro lamento de guerra, afirmou que “no futuro, a teoria dos conjuntos — cantoriana — seria considerada como uma doença de que a matemática se recuperara”.
No fim das contas, nessa guerra mal contada, a teoria dos conjuntos cantoriana venceu e impera na matemática hodierna — mesmo gerando, ainda, muito debate sobre axiomatizações dela. Entretanto, existe um outro aspecto dessa guerra que não é mal contada. Ele nem é contado. As motivações teológicas de Cantor e as suas respostas às críticas filosóficas ao infinito quantitativo em ato da sua teoria.
Primeiro, Cantor definiu o infinito como um número (por isso teoria dos números transfinitos) e mostrou que existe uma infinidade deles. Ele pensava que todos os números transfinitos estavam, também, na mente de Deus. E mais ainda, que Deus era o infinito absoluto aquele que contemplava (em termos de conjuntos) todos os números transfinitos. O limite do infinito, para Cantor, é Deus. Na defesa e explicação dessa sua tese teológica, ele trocou correspondências com Cardeais da Igreja justificando a sua posição e teoria.
Segundo, Cantor enxergou (corretamente) a fonte do princípio escolástico infintum actu non dactur. Em Aristóteles. E é ao Estagirita que ele despeja as suas críticas. A filosofia tradicional, incluindo Aristóteles, se opõe à noção de números transfinitos pelo simples fato de que, para ela, eles não são números. Números são apenas os inteiros positivos maiores do que 1 e nada mais. Todo o resto (com exceção da unidade) é chamado de magnitude. Números são medidos pela unidade. Cantor, porém, diz que conjuntos infinitos podem ser medidos; seus elementos podem ser enumerados. Eles não são medidos, no entanto, como os conjuntos finitos o são, isto é, por meio da unidade. Em vez disso, eles são medidos via um número limite que sucede a todos eles, os números transfinitos, e que é maior do que qualquer quantidade finita de unidades. Ou seja, definir o número como a multitude medida pela unidade, como o fez Aristóteles (seguindo uma visão pitagórica de número), é associar propriedades pertencentes a uma única espécie de número ao gênero, ou tomar os números finitos como o próprio gênero de número. Para Cantor, então, o erro fundamental nos argumentos de Aristóteles contra o infinito quantitativo em ato seria um erro lógico.
Porém, será que Aristóteles e Cantor estão falando da mesma coisa? À primeira vista, parece que não. O infinito quantitativo em ato que Cantor afirma não é o infinito quantitativo em ato que Aristóteles nega. Por um lado, Aristóteles considera o infinito em ato como sendo ilimitado em qualquer aspecto: é inteiramente sem limites. Os números transfinitos de Cantor, por outro lado, não são totalmente ilimitados. Os argumentos de Aristóteles contra um número infinito em ato não são dirigidos contra os números transfinitos, como Cantor os descreve. Somente um número que excedeu todos os limites poderia absorver os números finitos adicionados a ele; os números transfinitos não, precisamente porque são limitadas nesse aspecto.
À parte se Aristóteles e Cantor estão falando da mesma coisa, entretanto, há outra questão: Cantor de fato estabeleceu que existem coisas como números transfinitos? Para Cantor, a existência é dada em dois sentidos. O sentido com o qual os matemáticos per se estão preocupados, que ele chama de existência intra-subjetiva ou imanente. Pois, para Cantor, os matemáticos não se preocupam com a realidade transubjetiva, o que realmente se encontra na natureza corpórea e intelectual, mas com a consistência e as relações determinadas entre os conceitos matemáticas na mente: “Matemática, na construção das suas idéias tem apenas e exclusivamente que levar em conta a realidade imanente de seus conceitos e não tem qualquer obrigação de fazer testes para a sua realidade transitória”, diz Cantor. É por causa dessa distinção que a matemática merece o nome de «matemática livre», continua ele. Não obstante, ele AFIRMA também que os seus números transfinitos são reais também no segundo sentido : que os conceitos na mente são símbolos de realidade naturais ou intelectuais separadas.
Os argumentos de Aristóteles contra um infinito em ato não representam uma ameaça à teoria de Cantor, a menos que ela seja interpretada no segundo sentido. Pois os argumentos de Aristóteles não são direcionados contra a consistência lógica do infinito em ato, mas contra a sua existência real no mundo.
Enfim, os números transfinitos de Cantor podem ser limitados, mas a quantidade de coisas que poderíamos dizer sobre o infinito certamente não é.