Em 2014, estive em Florença pela primeira vez. Entre visitas a locais consagrados, como a Galleria dell’Accademia, famosa por conter a obra de arte que me proporcionou a maior experiência estética que já tive na vida, o David, de Michelângelo, onde descrevo – de maneira breve – a experiência aqui, e outros nem tanto, visitei a casa de Dante Alighieri. Lá, encontrei exemplares antiquíssimos da sua obra magna, Divina Comédia, roupas e artefatos utilizados por ele, sua cama de dormir e, bem ao lado da mesa que sustentava o seu monumento de tercinas, uma foto intitulada “A porta do Inferno”. Rodin esculpiu, em Bronze, inspirado em Dante, uma imensa porta contendo 180 figuras, quase todas em agonia, e, entre elas, no umbral da porta, O Pensador. O famoso pensador.
Além de evidenciar o diálogo que perfura a dimensão temporal, essa imagem me marcou a ponto de, em 2015, desta vez em Paris, ser impelido a visitar o Musée Rodin. Lá pude contemplar diversas obras do artista e, é claro, ver pessoalmente “A porta do Inferno”. Impressionante. Verdadeiramente impressionante. Descobri, então, que Rodin era autodidata. Não foi com a educação formal que ele aprendeu a esculpir. Foi com a realidade. Suprema. Mesmo quando desnudada através da literatura. Deixou, inclusive, o seguinte conselho aos escultores:
“Olhai com simplicidade e docilidade… Onde foi que compreendi a escultura? Nos bosques, apreciando as árvores, nas sendas, mirando a estrutura das nuvens; em todo o lado, menos nas escolas. Em tudo, obedecer à natureza: o único princípio em arte, copiar o que se vê”.
Poderíamos exibir interpretações distintas a partir desse conselho, sem dúvidas. Uma delas, por exemplo, seria a literalidade dele. Porém, quero vos apresentar uma interpretação realista. De abertura à realidade. Soberana realidade. Isto é, a atitude que permitiu a Rodin a genialidade para esculpir a entrada do inferno – e outras obras – foi uma virtuosa. A humildade diante do real. Ela possibilitou uma penetração na profundidade, nas camadas do real que estão além da superfície. Essas, acessíveis ao olhar artístico. Eu diria, somente ao olhar artístico, pois a ciência (no sentido moderno) e a técnica, por definição, não superam a superfície. Foi a abertura ao real que possibilitou a Rodin enxergar e esculpir o que Dante imaginou e escreveu.
Essa abertura, essa atitude, penso eu, deve ser completa; em todos os âmbitos da vida. Abrir-se ao real é estar imergido, de maneira consciente, nele; atento às suas nuances escondidas, sua complexidade e comunicação. Com isso, ser capaz de, como Rodin, perfurar o tecido do tempo e deixar às gerações o suspiro que representa o mergulho na realidade. “Alguém está me revelando algo”, diz-se após um suspiro de emoção diante do que se vê. Seja a Porta do Inferno ou não.