Encarceramento nos limites do mundo


Existem coisas que podem ser conhecidas apesar de não poderem ser expressas em palavras. Em certo sentido, por exemplo, eu conheço o conjunto de todos os conjuntos, mas sempre que tento expressá-lo em palavras sou pego por uma rasteira paradoxal ou um barbeiro que não consegue decidir se faz a própria barba ou não. Ninguém descreve o reino do inefável, mas será que alguém consegue mostrá-lo? 

Penso que Wittgenstein pode me ajudar a responder a essa pergunta neste texto, que, Deus queira!, espero não ser uma das coisas conhecidas mas impossíveis de serem ditas. 

No seu “Tractatus Logico-Philosophicus”, Witt tenta descobrir os limites do que pode ser pensado e expresso. Ele tentou dizer como o próprio mundo – tudo o que é o caso, tudo o que pode ser pensado ou falado – deve ser para que a linguagem seja capaz de “retratá-lo”. 

O mundo é a totalidade dos fatos. Os fatos são determinados por estados de coisas. Os estados de coisas, cada um radicalmente independente de todos os outros, são configurações de objetos simples. Objetos simples são o que constitui a substância inanalisável, ingenerável, indestrutível do mundo.

Wittgenstein estava tentando fornecer uma análise da realidade – uma decomposição da realidade em seus constituintes lógicos finais. E, paralelamente, uma análise da linguagem. Para ele, objetos simples da realidade eram representados pelo que ele chamava de sinais simples (ou signos simples). Ou seja, há uma correspondência dos elementos mais básicos da realidade com os elementos mais básicos da linguagem. E isso significa que posso combinar os sinais para dizer, verdadeira ou falsamente, como os objetos são combinados, ou seja, quais são os fatos.

Ele, também, pensava no mundo como um todo auto-contido e limitado, em que as partes podem ser vistas como uma unidade. Como ele mesmo escreveu,

 “As coisas são independentes na medida em que podem ocorrer em todas as situações possíveis, mas essa forma de independência é uma forma de conexão com estados de coisas, uma forma de dependência.”

Ele se referia a uma espécie de unidade lógica abstrata que mantém as coisas juntas. Agora, Wittgenstein sabia que, ao fazer isso, ele se colocava fora do mundo; que o mundo como uma unidade não faz parte do mundo. Portanto, pela sua própria análise, não poderia haver um discurso significativo do mundo, pois estando o mundo fora do mundo, a linguagem fica impossibilitada de se referir a ele. Wittgeinstein sabia disso, obviamente. Chegou a confessar no fim do “Tractatus” que quem o entendesse reconheceria o que ele dissera como tolice (“nonsense”). 

O que, então, Wittgenstein estava tentando mostrar ao escrever essa obra, uma vez que “sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”?

Aqui está o ponto principal, uma distinção entre o que pode ser dito e o que pode ser mostrado. O que não se pode falar, ou o que não pode ser dito, pode ser mostrado. O “Tractatus” é ele próprio uma tentativa de mostrar algo. Nenhuma característica do mundo como um todo pode ser adequadamente transmitida em palavras. A estrutura em que todos os fatos são mantidos juntos não é um fato em si. 

Além disso, precisamente o que podia ser mostrado era o grande interesse de Wittgenstein, o que ele considerava realmente importante. Como ele escreveu em um carta,

“Meu trabalho consiste em duas partes: a apresentada aqui mais tudo o que não escrevi. E é precisamente esta segunda parte que é a mais importante.”

 O seu interesse em traçar os limites do que pode ser pensado e expresso tinha mais a ver com o que está além deles do que com o que está dentro desses limites. Pois ele acreditava que qualquer coisa de valor estava fora do mundo: o valor era uma característica do mundo como um todo, não de qualquer fato sobre como as coisas eram. Wittgenstein sustentava que ser bom significava ver o mundo como um todo limitado e adotar uma certa atitude em relação a ele, por meio da qual seus limites, por assim dizer, se expandiam. E é aqui que é mostrado o que é de valor: a beleza do mundo; o seu significado; Deus etc.

Assim, tudo isso que é inefável mas conhecido, devido à sua inexprimibilidade, só pode ser apontado, mesmo que por meio da linguagem.

Os símbolos tradicionais que sempre acompanharam o homem, e que deveriam continuar acompanhando, são o meio de expressão “par excellence” do inefável; daquilo que pode ser mostrado e, muitas vezes, não pode ser dito. O simbolismo é um meio para mostrar aquilo que pode ser conhecido mas não dito. Exatamente por esse motivo, então, forço-me a concluir que a violenta destruição simbólica que nos assola é o encarceramento nos limites do mundo.

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