Existe uma categoria de ruídos que é silenciosa na sua aparência mas essencialmente entorpecente. Diferente dos ruídos que são acessíveis a todos os homens capazes de ouvir, esses ruídos são experienciados individualmente. São ruídos de um homem só. Refiro-me, pois, ao ruído interior. Um ruído que preocupa. Um ruído que, com o tempo, entristece o espírito, enche o homem de camadas impenetráveis e o torna uma falsa representação de si mesmo. Um homem contagiado, pois, por esse ruído não conhece as características mais elementares sobre si mesmo. Não sabe o seu temperamento. Não reconhece os seus defeitos. As suas qualidades. Não sabe por que vive. Tudo são aparências e representações. É um kantiano velado. Pior ainda, não é capaz de amar. É capaz de pensar que ama, no entanto. Por quê? Simples. O amor é sacrifício e doação. Amor exige relação. Amar é dar-se por completo ao outro. Ora, só podemos dar aquilo que possuímos. Logo, um homem que não possui a si próprio, pelo menos em partes, que é o caso do homem ensurdecido que não olha para dentro, não é capaz de amar.
Assim, se quisermos ser e não apenas parecer ser, faz-se necessário descer ao interior e prestar atenção ao que se encontra. Essa descida, essa reflexão acerca de si próprio, porém, é dolorida. Não é tarefa para homens frouxos. Homens sem peito. É tarefa para corajosos. Valentes. Exige vigor e retidão, pois o que se encontra na descida é espantoso. O cheiro de mofo e a escuridão palpável são inevitáveis. Descer da torre do ego pelas escadas internas, espirais e intermináveis, é sentir esse cheiro e temer a turvidão. No entanto, é caminho necessário para o homem com vida interior. É aí, onde a luz das tochas tendem a aluir, que a emblemática frase de Sócrates, “Conhece-te a ti mesmo”, se realiza. O homem que desce às profundezas do ser para encontrar a Luz é como o faroleiro que, para poder fazer o seu trabalho e, assim, fornecer aos navegantes a esperança do “terra à vista”, precisa descer as escadas do farol diariamente e encontrar a luz do seu lar para poder manter o farol aceso no seu próximo turno. Ao encontrar a Luz, o homem torna-se instrumento da Luz. “Conhece-te a ti mesmo”. Desça da torre. Descer é preciso.
Uma vez lá, com a tocha a se apagar a cada passo, os reais defeitos e as reais qualidades se tornam evidentes. Mais ainda, a possibilidade deles. Além do conhecimento direto do que se é, com a reflexão, conhecemos também o que se é capaz de ser. Existe uma anedota, certamente sobre um santo, que expressa o espanto do exercício de descida. Certa vez, contaram a uma pessoa um episódio trágico. Terrível. Um crime de um homem contra outro homem. Desses que causam náuseas. Quem contava o causo, perguntava-se com espanto: “Como pode? O que se passa no coração de alguém que comete tamanha atrocidade?” O santo, sem dúvidas um santo, depois de ouvir o relato e as perguntas, calou-se. Não disse nada. “Cala-te diante disso? Não tens nada a dizer?”, perguntou o relatador. Então, veio a resposta: “Eu fico espantado, além de entristecido. Espantado porque seria capaz de cometer eu mesmo essa atrocidade com todos os seus detalhes. E piorá-la.” Essa sinceridade e autoconhecimento só é possível com vida interior.
Para se trilhar esse caminho, a condição mais importante é, sem dúvidas, o silêncio interior. Eis o ádito da vida interior. Se não há silêncio, há surdez. É o silêncio que transforma os ruídos em sinfonia. Ele harmoniza o estrépito. ordena os timbres e, como um maestro, rege a obra. As melodias resultantes ecoam na alma e a textura interior, antes escondida, surge com nitidez. Esvai-se a aparência e aparece a substância. Depois, é preciso constância. Todos os dias, com tempo reservado, praticar o silêncio e descer da torre. Não pode ser um ímpeto passional, uma consequência de um primeiro impulso. Perseverar, perseverar e perseverar. Que nada desoriente. Essa constância é o alimento interior, o meio para que a seca do inverno desvaneça e o florir da primavera apareça. Constância.
Dessa forma, a torre do ego torna-se um farol de luz. Como o faroleiro, desça da torre. Desça da torre.
2 respostas para “Desça da torre”
Professor, tenho 18 anos; sou, pois, apenas uma centelha, ou melhor “barro”, conforme o Profeta; porém, posso lhe dizer que exultei de alegria ante o esmero dos seus artigos. Com efeito, peço encarecidamente que não pare. Já falei-lhe para meus colegas de classe e meu professor; hoje, por este, sou conhecido como seu discípulo kkkk. Enfim, apenas um alento, não ao ego -assim espero-, mas à Substância de seu trabalho, que continue-o, e frutifique-o em outros corações. Fique com Deus sempre, pois “A messe é grande, e os trabalhadores são poucos”.
Muito obrigado pela mensagem, Diogo.
Vamos em frente. Temos muito trabalho pela frente.
Um abraço!