A dissolução da comunidade metafísica


Todos nós conhecemos a era em que vivemos. Tempos sombrios. A confusão impera em todas as esferas, como um novo reino de caos, dos limiares da realidade que, com uma rebeldia destrutiva, revolta-se e declara guerra contra o centro, hierárquico e ordenado, que o sustenta. O caos procura a ordem não para ser estruturado por ela, mas para instaurar uma “nova ordem” momentânea, uma que, num piscar de olhos, é destruída e substituída por uma outra. E depois mais uma, que antecede a próxima. E mais outra…

Nesta guerra entre a margem e o centro, um dos triunfos do caos é o domínio sobre a linguagem.  Para evidenciar uma das consequências desse ato, a dissolução da ordem metafísica, pegarei emprestado de Santo Agostinho o conceito de povo. Diferentemente de Cícero, para quem povo é uma multidão unida por “consensu iuris”, Santo Agostinho identifica povo como um grupo de seres racionais conectados entre si pela posse harmoniosa comum – “concordi comunione” – das coisas que amam. Ou seja, a qualidade da unidade de um povo é medida pelos valores civilizacionais prevalentes entre os seus membros. Notamos que, dessa forma, a unidade, tão necessária a um povo, pressupõe uma “ordem metafísica” no amor e manifestada de maneira natural e harmoniosa. Jamais é imposta ou se apresenta, anterior à essa ordem, consensualmente. A esse tipo de comunidade, estabelecida naturalmente e ordenada no amor, chamarei apenas de comunidade metafísica.

Em toda comunidade metafísica, como fundamento da ordem que a rege, há a dependência da capacidade dos homens entenderem uns aos outros. Portanto, aqui faz-se presente o valor da linguagem – seja ela simbólica, natural etc. – na ordem. Isto é, a linguagem enquanto possibilidade de comunicação. Numa comunidade que não é formada por seres racionais, portanto uma que não é metafísica, essa comunicação ocorre de maneira rudimentar, sempre comunicando particulares e jamais os conceitos. É o caso, por exemplo, de qualquer linguagem desenvolvida no reino animal. Na comunidade formada por seres racionais, porém, a diferença fundamental é a capacidade da linguagem comunicar conceitos. Quando, por exemplo, o homem utiliza um termo como “árvore”, em geral, há a referência ao conceito de árvore abstraído pelo intelecto.

Antes de continuarmos, é preciso alguns comentários acerca de termos e conceitos. A experiência sensorial é o início do conhecimento. A partir de particulares, percebidos pelos sentidos, imagens são formadas e, com o intelecto, conceitos são extraídos. O conceito é justamente aquilo que é universal e instanciado em cada particular que o possui. Além disso, a cada conceito captado, utilizamos um termo (signo) que aponta, que se refere, ao universal. Por exemplo, quando utilizamos a palavra “cachorro”, mesmo quando aplicada a um animal particular diante de nós, estamos fazendo referência àquilo que é universal a todos os cachorros, isto é, ao conceito de cachorro. Portanto, existe o que eu chamo de “conexão conceitual” entre a linguagem e a realidade.

Dado que a linguagem é essencial para a possibilidade de uma comunidade metafísica, a sua dissolução conceitual é a impossibilidade da própria comunidade. Logo, para a margem, para o caos, os ataques à linguagem são uma maneira efetiva de “destruir” a ordem. E um dos principais meios de se efetuar esse ataque é com o rompimento da conexão conceitual da linguagem com a realidade, o que é feito com um posicionamento filosófico, o nominalismo, que nega a existência real dos universais, dos conceitos. Cada termo é meramente um nome, sem nenhum conceito real subjacente. Logo, a conexão conceitual entre a linguagem e a realidade é rompida e, com ela, a possibilidade de uma comunidade metafísica.

Quando o nominalismo se torna dominante, não são os conceitos mais imediatos aos sentidos, como “cachorro”, “árvore”, “homem” etc., que são perdidos, mas antes aqueles que dão sentido à existência do homem dentro da comunidade. São conceitos como a velha tríada transcendental, “Bom”, “Belo” e “Verdade”, ou ainda “amor”, “santidade”, “sabedoria”, “justiça”, “virtude”. Ou seja, aquele que valoram a existência do homem e a “concordi comunione” na comunidade metafísica. Se não sabemos mais objetivamente a que conceito se refere cada um desses termos, como podemos nos comunicar sobre o que realmente importa? Sobre aquilo que nos une metafísica e naturalmente? Ora, simplesmente não podemos e, com o nominalismo, esses termos sempre farão referência ao que é mutável e temporal. Logo, o triunfo do nominalismo é o triunfo do caos. É a vitória da margem. E, como vimos, o centro do ataque é contra a linguagem.

Por conseguinte, restaurar a linguagem é, acima de tudo, uma estratégia de ação, ou melhor, de reação. Especialmente com a literatura, a poesia e a linguagem simbólica. Pois é com elas que o sentido é recobrado, a metafísica se torna presente e a ordem é restabelecida.

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