A democracia dos mortos


Em seu artigo On Reading Old Books, C. S. Lewis recomenda ao estudante de sua época, mas que pode ser estendido para a nossa época, que a cada livro novo lido, ele leia um antigo. Caso isso seja, por alguma razão, difícil de ser praticado, ele recomenda que se faça a leitura, então, a cada três novos. Isto é, não deixa de recomendar os antigos. Essencialmente, como Lewis bem sabia, os antigos possuem remédios eficientes para as doenças que assolam o espírito. Aliás, ele, C. S. Lewis, foi educado com os antigos.

Um dos argumentos apresentados no ensaio é o de que a leitura dos antigos livra-nos dos vícios, a que todos nós estamos sujeitos, do nosso tempo. Estamos inseridos em uma época e, com isso, carregamos os seus vícios. Não significa que um antigo não os possua. É claro que não. Porém, os seus vícios são da sua época e não da nossa. Caso tivéssemos acesso aos livros do futuro, deveríamos fazer a mesma coisa com eles. Penso que Lewis está certo.

Certa feita, ao ter comprado algumas obras de Platão, Aristóteles, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, uma pessoa, espantada e com a testa franzida, me perguntou: – Por que você compra esses livros antigos? Isso já não está ultrapassado?

“Ultrapassado”. Aqui reside uma idéia, tão comum à nossa época, de que estamos progredindo; de que, por algum motivo, somos uma civilização que progride. Simplesmente porque o tempo passou e não por algum mérito. Ora, a leitura dos antigos é o que me permite perceber a absurdidade dessa idéia. Um dos grandes problemas do nosso tempo, na verdade, é que ele é muito antigo. Completamente antiquado. Há, inclusive, uma transição de antiquaria a antiquaria. Refiro-me, obviamente, às idéias que circulam nele. Não há problema nisso. Ou melhor, não deveria haver problema nisso. Não se as idéias fossem as perenes, pois possuem a característica de serem válidas em qualquer tempo, para qualquer povo. A geração do nosso tempo, porém, apega-se, sempre com ares de novidade, a bobices antigas que não são eternas. O atomismo de Demócrito. O hedonismo de Aristipo de Cirene. O nominalismo, utilitarismo etc. Algumas outras vezes, são velhas heresias. Outras vezes, bobagens como o materialismo dialético e uma escatologia, emprestada do cristianismo, tornam efêmero o que é perene. Sempre há uma novidade no ar, não tão nova assim, que costuma se manifestar num movimento social ou numa escola de pensamento.

Essas idéias ressurgem não porque foram estudadas e consideradas verdadeiras. Pelo contrário, porque não foram estudadas e, juntamente, nem as idéias antagônicas que as refutam. Essas idéias denotam a juventude intelectual. São as primeiras coisas pensadas por quem “pensa com os próprios miolos”. O resultado só pode ser um: o objetivo do progresso é aquilo que é efêmero. Portanto, os antigos, que buscaram o perene, são “ultrapassados”. No entanto, nesse diálogo com os antigos, há ainda o conhecimento da transformação das idéias. É somente lendo Aristóteles, os escolásticos, depois Galileu, Descartes e Newton, que percebemos a saída, por exemplo, no caso do conceito de matéria, do princípio de continuidade nas mudanças substanciais, daquilo que é potência e se torna inteligível quando é informado por uma forma, para aquilo que ocupa lugar no tempo e no espaço. A perda de informação – e de realidade – é imensa.

Só há uma solução. Uma prática. Essa exposta por C. S. Lewis e que podemos identificar com o que Chesterton chamou de a democracia dos mortos. Cada um de nós carrega o fardo de uma civilização que nos antecede, que nos quer herdeiros. Para poder honrar e carregar esse fardo, retornar ao perene, democracia dos mortos. Cada um de nós. O antídoto para a antiguidade da modernidade é a antiguidade. Um resgate ao que tornou nobre o espírito do homem. A eternidade descoberta pelos nossos mortos.

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